Um passo atrás em benefício do cérebro: saiba por que escolas estão voltando a investir na escrita à mão
Já é de amplo conhecimento de pais e educadores que o excesso de aparelhos eletrônicos pelos jovens pode ter consequências graves, como o aumento de casos de depressão, cyberbullying e ansiedade. Mas um dos efeitos secundários da presença dos gadgets nesta faixa etária tem chamado particularmente a atenção. As novas gerações digitam cada vez mais e escrevem pouquíssimo à mão, o que pode comprometer habilidades cognitivas básicas. Por conta desta percepção e amparada por estudos científicos que comprovam o problema, escolas da região já revisam alguns passos da digitalização do ensino e buscam iniciativas para aproximar seus alunos dos bons e velhos papel e caneta.
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— A escrita à mão é uma habilidade neuropsicomotora complexa que exige a integração de múltiplos sistemas: controle motor fino, coordenação visomotora, percepção espacial, planejamento gráfico, regulação rítmica e atenção sustentada — explica Renato Gama, neurologista e professor da Afya Educação Médica. — Estudos mostram que há relação direta entre o desenvolvimento motor fino e o desempenho acadêmico posterior. Crianças que apresentam boa fluência e legibilidade na escrita durante a pré-escola tendem a ter melhores resultados em leitura e matemática no ensino fundamental.
Os efeitos do mau desenvolvimento de habilidades manuais como escrita e desenho já estão sendo sentidos pela Geração Z (nascidos entre 1997 e 2010) e pela sua sucessora, a Geração Alfa, segundo aponta a psicóloga Diana Quintella, diretora da escola MiniMe. Elas incluem os jovens que viveram a infância em um mundo já digitalizado. Por isso, a instituição, que recebe alunos da educação infantil, entre 4 meses e 6 anos, dá ênfase a aprendizados físicos e manuais.
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— Hoje, se a sociedade quiser, pode até esquecer o papel e a caneta. As novas tecnologias foram introduzidas na educação muito inocentemente, mas agora sabemos os riscos e precisamos dar um riscador, como lápis, caneta ou giz, para a criança. Com eles, o aluno já está elaborando como vai desenhar a letra. Essa atividade mais tarde ajudará no desenvolvimento de senso crítico, na sociabilização, no planejamento, na criatividade e na estruturação e argumentação de textos — avalia ela, que entende que o aprendizado da criança envolve todo o corpo e inclui brincadeiras e movimentos. — Se entendermos que a alfabetização é um processo, ela começa bem antes. Por exemplo, quando a criança entende um símbolo coletivo, como quando pinta a mãozinha e faz um carimbo.
Crianças da escola MiniMe fazem trabalho manual
Divulgação
No ano passado, um estudo conduzido por cientistas do Laboratório de Neurociência do Desenvolvimento da Universidade de Ciência e Tecnologia da Noruega acompanhou 36 estudantes universitários. Um aparelho com 256 sensores produziu eletroencefalogramas enquanto eles digitavam e escreviam com canetas. A publicação feita na revista científica Frontiers in Psychology constatou que a escrita manual aumentou a conectividade em diferentes regiões do cérebro, o que não aconteceu na digitação.
Ainda há pesquisas mais específicas segundo as quais a letra cursiva e a de fôrma desencadeiam maneiras distintas de controle psicomotor, que acionam diferentes regiões e funções do cérebro. Além disso, a automatização do processo de escrita permite que a criança libere recursos cognitivos para tarefas mais complexas, explica Gama:
— Letra irregular, escrita lenta ou dolorosa, dificuldade de manter espaçamento e alinhamento, além de cansaço físico precoce são sinais frequentemente confundidos com desatenção ou falta de interesse, mas refletem, na verdade, uma imaturidade neuromotora.
Alunos da escola Pedra da Gávea em trabalho manual em grupo
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Atenção especial na primeira infância
Embora a falta do hábito de escrever à mão prejudique todos os estudantes, há uma preocupação especial com a primeira infância, que vai até os 6 ou 7 anos, quando o cérebro desenvolve áreas relacionadas a linguagem, motricidade fina, atenção e memória de trabalho. A Organização Mundial da Saúde (OMS) e a Sociedade Brasileira de Pediatria recomendam que a criança só seja exposta às telas após os 2 anos, quando o contato deve começar gradualmente e sob supervisão.
O início da escrita manual também está relacionado à maneira como a criança se percebe no mundo. Segundo a pesquisa da Universidade de Ciência e Tecnologia da Noruega, crianças que aprendem a escrever em um tablet, e portanto não exercitam os desenhos das letras, podem apresentar dificuldades na diferenciação de letras parecidas ou espelhadas no alfabeto digital, como o b e o d.
— Escrever à mão é experimentar o seu desenho, o seu rabisco, é uma relação com este instrumento. Depois da garatuja (primeiros rabiscos), a criança começa a experimentar a escrita do seu nome. Cada etapa de desenvolvimento tem a sua função e seu sentido — explica Fernanda Mairos, diretora pedagógica do Centro Educacional Espaço Integrado (CEI).
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Ela conta que a escola chegou a adotar livros digitais em 2021, ainda sob o impacto da pandemia de Covid-19, mas tão logo as atividades presenciais foram integralmente retomadas, a coordenação pedagógica optou pela retomada gradual dos exemplares físicos. Mesmo com pouco tempo de uso dos livros digitais, foram observadas consequências.
— O que fomos avaliando e hoje cada vez mais estamos recuperando é o tempo de aprendizagem. Leva tempo para o conteúdo ser acomodado, e o aprendizado precisa ser muito vivenciado. O digital permite pouco isso: você coloca a resposta e já vem um corretor que diz a forma e a concordância certas. Isso vai distanciando o pensamento do que está sendo escrito. Também por isso fizemos a passagem de volta mais rapidamente — destaca Fernanda.
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Autor do best-seller “A geração ansiosa”, o psicólogo social e professor universitário americano Jonathan Haidt conduziu uma ampla pesquisa sobre tecnologia. Nela, recomenda que os jovens só tenham o seu smart após os 14 anos, pontuando que o ideal seria introduzir o aparelho aos 18. Para as redes sociais, ele crava o limite mínimo de 16 anos. Outra de suas propostas é a proibição dos aparelhos nas escolas, que se tornou lei federal no Brasil no início deste ano, medida elogiada por ele.
— Os professores odeiam os celulares, mas, em muitas escolas, havia medo de que os pais reclamassem se não pudessem entrar em contato com seus filhos. Agora estamos descobrindo que os problemas são geralmente menores do que o esperado e desaparecem rapidamente — disse Haidt, em entrevista ao GLOBO, em maio.
Investimento em redações e resumos
A angústia dos pais também entra nesta equação. É sedutor entregar à criança um aparelho que a distraia e a deixe mais calma, além de não precisar enfrentar a pressão dos pequenos para ter acesso ao mundo digital. Preocupadas com o impacto do uso precoce de celulares, um grupo de mães fundou no ano passado o Movimento Desconecta, que propõe um pacto entre famílias para adiar a digitalização. Em pouco mais de um ano, escolas de 24 estados brasileiros já aderiram a este acordo coletivo.
— A ideia é reduzir a pressão que muitas crianças fazem quando dizem “todo mundo tem, menos eu”. Se todos adiam (a digitalização) juntos, essa cobrança deixa de existir. Queremos que nossos filhos atravessem a infância e maior parte da adolescência livres das pressões e dos riscos do celular próprio e de uso das redes e estejam mais preparados para lidar com eles quando chegar a hora. Em nosso site é possível assinar o acordo e se inscrever como líder para levar o movimento à sua comunidade escolar — explica Catarina Fugulin, líder de políticas públicas do Movimento Desconecta.
Alunos da escola PB fazem simulados e redações à mão: treinamento para o Enem
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Uma das escolas que aderiram ao pacto é a Pedra da Gávea, com unidades na Barrinha e no Jardim Oceânico.
— Facilitamos a entrada no movimento, e hoje o grupo formado por famílias da escola conduz suas próprias reuniões, reflexões e acordos. Várias famílias relatam mudanças de hábitos em casa. Temos uma coordenação em que reunimos propositalmente as áreas de tecnologia e socioemocional — conta Cris Edelman, diretora da instituição, onde as famílias também realizam encontros para passeios e sessões de brincadeiras livres.
A geração que está no ensino médio agora ficou bem mais exposta à digitação e à digitalização. Ao inaugurar sua primeira unidade na Barra, este ano, o Colégio e Curso PB logo notou a dificuldade dos alunos na parte mecânica da escrita manual.
— Faço os simulados dos vestibulares com eles e reparo que estão sempre girando o punho para alongar. Os professores são orientados a observar esta munheca, o vocabulário e a letra dos alunos. Em muitos casos, quando o estudante chega, vemos redações que não dá para distinguir se são de 3ª série (do ensino médio) ou 3º ano (do fundamental). Mas logo vamos vendo a evolução. Percebemos também dúvidas sobre como se escrevem palavras básicas — conta Jonas Stanley, professor de matemática, física, química e astronomia do PB e diretor da instituição.
Aluna do colégio Pensi faz anotações em caderno
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Para estes últimos anos da vida escolar, a escrita à mão traz ainda outros benefícios, como a memorização do vasto conteúdo didático exigido para o vestibular e a legibilidade, usada como critério na correção da redação do Enem. No Pensi, as redações, que passaram a ser digitalizadas na pandemia, voltaram ao papel.
— Aquele momento trouxe o aprendizado de como usar ferramentas para uma devolutiva mais rápida da correção para o aluno. Mas agora usamos essa agilidade da tecnologia sem abrir mão de que eles façam também produções e registros tutorados e mediados por um professor, de modo a desenvolver os hábitos da escrita e da leitura também — destaca Pedro Rocha, diretor de ensino da escola que tem unidades na Freguesia e Recreio.
Já a fixação do conteúdo pela escrita passou a ser trabalhada em uma nova iniciativa no Colégio Matriz Educação, na Taquara. Professores do 4º e 5º anos da disciplina de leitura e produção textual iniciaram um projeto para troca de livros entre alunos e famílias que já apresenta resultados e será ampliado para outras unidades. A cada leitura, os estudantes produzem resumos escritos manualmente.
— Entendemos que a escrita manual contribui para fixar conteúdos, organizar pensamentos e ampliar a capacidade de expressão. Nessa fase, as crianças precisam consolidar habilidades de leitura e escrita — frisa Carolina Tabosa, coordenadora-geral dos anos iniciais.
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*Esta reportagem foi publicada no especial Educação do GLOBO-Barra deste domingo (28)