'Cansaço da polarização está levando o jovem ao centro', diz Felipe Nunes, que lança livro 'Brasil no Espelho'
Em seu novo livro, “Brasil no Espelho”, o cientista político Felipe Nunes expõe um país que se une na fé e no apego à família, mas que anda meio cansado, inseguro, individualista e desconfiado. Valores e comportamentos que determinam como pensamos, agimos, nos agrupamos — e, claro, votamos. A obra, que será lançada pela Globo Livros na terça-feira, é fruto de uma pesquisa com quase 10 mil entrevistas. Para mapear as mudanças no comportamento do brasileiro, o diretor da Quaest divide os brasileiros em quatro gerações e revela como a insegurança sempre permeou a forma como a sociedade se desenvolve e se vê. O clima de incerteza da última década, argumenta, favoreceu o cenário de polarização eleitoral.
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Por outro lado, dados inéditos mostram pontos de convergência que “furam bolhas” e como os jovens, que ele classifica como Geração.com, apresentam sinais de cansaço dessa polarização: 42% se declaram de centro, ante 28% de direita e 26% de esquerda, percentual superior a de outros grupos. Em entrevista ao GLOBO, Nunes reflete sobre como esse país chega às urnas em 2026, as nossas diferenças e semelhanças e, a partir dos números, qual é a cara que o Brasil tem hoje para mostrar.
Capa de 'Brasil no Espelho", novo livro de Felipe Nunes
Divulgação
No livro, o senhor divide as gerações em quatro grupos. Quais as diferenças entre elas?
Se a gente pega a História do Brasil de 1930 para cá, dá para a gente recortar a socialização dos brasileiros da seguinte forma: de 1945 até 1964, eu chamo de geração “Bossa Nova”, que viveu o primeiro período democrático brasileiro, com uma visão desenvolvimentista, otimista nos anos JK. Em seguida, a gente tem uma forte ruptura que dá início à geração “Ordem e Progresso”, marcada por um regime autoritário. Já no começo da década de 1980, é a geração “Redemocratização”, quando o país voltou a ser uma democracia, estabilizou a moeda e começou a discutir outros problemas. Até que chegamos aos anos 2000 e o começo da popularização da internet fez com que outra geração surgisse, a “Geração.com”, com uma convivência permeada pelo digital e pela dinâmica das redes sociais.
A pesquisa também aponta como as inseguranças que atravessam essas gerações. Elas mudam ao longo do tempo?
A insegurança permeia todas as gerações, só muda o tipo. A “Bossa Nova” talvez tenha vivenciado menos turbulências, mas só a mudança do Rio para Brasília é gigantesca do ponto de vista de organização da sociedade brasileira. Depois vem a mudança de regime, que também é significativa. Até que a gente chega na volatilidade e na instabilidade da inflação. A mudança de preços nos supermercados como marca dessa insegurança. Já a “Geração.com” cresce em meio a uma insegurança sobre seu futuro, porque as coisas tão muito mais incertas, as mudanças são muito mais rápidas. Em maior ou menor grau, o brasileiro viveu com insegurança o tempo todo.
E como isso impacta nas relações sociais, políticas e até na religião?
Essas inseguranças ajudam a explicar por que o Brasil, independentemente das gerações, é um povo conservador, na média. Porque a gente convive com insegurança econômica, política e urbana quase como regra. Isso produz conservadorismo, produz uma necessidade de se apegar àquilo que é mais tradicional. Um marcador das diferenças entre as gerações aparece na religião. Enquanto a “Bossa Nova” tem uma predominância de católicos, na “Geração.com” o que vemos são três grupos com praticamente o mesmo tamanho: católicos, evangélicos e os sem religião. Outra diferença é que a “Bossa Nova” achava que ter filhos era um dever dos casais para a sociedade, enquanto a “Geração.com” vê os relacionamentos com outra utilidade, digamos. A discriminação também é um marcador importante: para a “Geração.com”, há um reconhecimento de que a população negra é discriminada, algo que é negado pela “Bossa Nova”. E exatamente por reconhecer a discriminação, a “Geração.com” é que a menos pratica discriminação, como vemos na pesquisa. Outra curiosidade é que sempre se acreditou que a juventude era mais de esquerda, e os mais velhos eram mais de direita, numa noção comum de que as pessoas vão mudando seu posicionamento ideológico. Mas o que a pesquisa revela é que a juventude brasileira se vê muito mais de centro.
Quer dizer que a polarização pode ser rompida no futuro?
É a primeira vez que uma pesquisa constata, no país, que o jovem se vê muito mais no centro do que em qualquer um dos polos. Isso indica um cansaço dessa polarização eleitoral que nós vivemos. Os jovens estão tentando se encontrar no meio disso. Não à toa, existe um aumento de abstenção eleitoral dessa geração, um sinal de apatia. Eles são mais abertos do que a geração dos seus pais em temas como racismo e homofobia, e praticam menos o preconceito justamente por reconhecerem mais isso. Mas também são mais desconfiados, individualistas, vivem mais fechados nas suas bolhas digitais. Em vários lugares do mundo temos visto essa molecada se revoltar contra o status quo, o que não descarto no Brasil.
No livro, o senhor também avalia o Brasil em relação ao mundo, a partir de uma escala que combina o grau de segurança econômica e os valores de cada país. Mas se hoje temos uma geração mais aberta em temas como racismo e homofobia, por exemplo, por que o Brasil nos últimos anos está se afastando do parâmetro “Dinamarca e Suécia” e indo na direção de “Zimbábue e Líbia”?
De 2013 para cá, o Brasil teve mudanças em uma velocidade tão rápida que não dá tempo de as pessoas se acostumarem. Houve Copa, Olimpíada, impeachment, diminuição do tamanho das famílias, crescimento evangélico, a universalização das redes sociais, crises econômicas. O resultado disso é um sentimento de insegurança e de medo sobre o futuro. As pessoas ficam mais cautelosas, preocupadas, o que influencia a forma como elas se comportam.
E como isso se reflete no voto?
O Brasil vive hoje um cabo de guerra entre conjuntura e estrutura. De um lado, o governo Lula promove programas sociais e resultados econômicos positivos, mesmo assim tem cerca da metade do eleitorado aprovando o governo. Por quê? Por causa da estrutura. O livro mostra que essa insegurança prolongada foi consolidando um nível de conservadorismo, de receio, que acaba trazendo a sociedade para o sentido contrário à forma como o atual governo atua. E é na disputa desses dois mundos que se dará a eleição de 2026. Na raiz, o que existe é uma estrutura social mais individualista, em que as pessoas não acreditam que os programas sociais mudem as suas vidas. O governo atua na superfície, não na estrutura.
Isso explica, então, por que microempreendedores e trabalhadores autônomos podem ser determinantes nas eleições de 2026?
Eu divido no livro o eleitorado em nove bolhas. Dessas, sete estão calcificadas de um lado ou de outro da polarização. Duas estão em disputa. Uma é justamente a bolha do empreendedor individual, que inclui desde o delivery e o motorista de aplicativo até a manicure e a diarista. O outro grupo é o dos liberais sociais, que votaram no PT pela primeira vez em 2022; para esse grupo, um candidato mais ligado ao bolsonarismo tende a ter menos apelo. Esses dois grupos, de maneiras distintas, têm visões muito claras sobre liberdade. Um governo mais intervencionista, na visão deles, é algo que os prejudica. Além desses grupos, você tem as bolhas do militante de esquerda, das classes D e E e dos progressistas calcificadas na coalizão do Lula; e os conservadores cristãos, agro, empresários e a extrema-direita com o lado antipetista.
Os atores políticos estão atuando para furar essas bolhas ou para consolidá-las?
Nos EUA, o debate sobre a polarização tem duas hipóteses: de que os atores políticos reagem a uma sociedade já polarizada, ou de que esses atores estão agindo, na verdade, para aumentar a radicalização e ter benefícios eleitorais. No Brasil, fico com a segunda hipótese: a política está produzindo a polarização e fazendo com que as pessoas tenham que se encaixar em um dos lados. Lula e Bolsonaro continuam sendo os maiores puxadores de voto do país, mas isso tende a mudar com a prisão do ex-presidente, que já está vendo o engajamento e a mobilização de sua base diminuírem.
Algo que parece unir o país é a preocupação com a violência, e conforme a pesquisa, isso afeta mais os pobres, que também defendem soluções mais punitivistas. A esquerda vai ter que adotar o discurso “linha dura” da direita?
Não é novidade que o Brasil seja um país punitivista, mas essa agenda aflorou agora por conta da sensação de urgência. A pesquisa mostra que 56% têm medo de andar nas ruas, e esse número chega a ser 70% nas capitais. É muito alto. O tipo de solução que essa sociedade busca é imediata, querem punições mais duras. A questão em 2026 é quem terá a capacidade dessa entrega urgente, mas que seja ao mesmo tempo duradoura, para fugir da ideia de que as operações acontecem e depois o crime volta. É claro que, em um cenário de polarização eleitoral, esse tema tende a se politizar, como ocorre com a economia. E aí a percepção passa a ter força muito maior do que o dado objetivo.
A pauta de segurança pública, hoje é mais sentida pelas pessoas do que o bolso?
Depois da pandemia, que produziu um alto nível de inflação, têm surgido mais políticos populistas, que tentam resolver os problemas apelando para valores, afetos. Em um contexto global de insegurança econômica, e que no caso do Brasil se alia à insegurança física gerada pela violência, os valores vão ser determinantes no processo eleitoral. Não é mais só “é a economia, estúpido”.
Apesar de todas essas bolhas e diferenças de pensamento, o que hoje nos aproxima?
O que mais aproxima é a fé em Deus, independentemente de qual é a sua religião. Existe um fatalismo religioso muito forte no país. Outro fator é a importância da família como motivação, como força no dia a dia. Há ainda uma visão de não querer ter patrão, de construir sua vida sozinho. Além de dinâmicas culturais que influenciam, como a força do sertanejo, que só não é o gênero musical preferido no Nordeste.
O brasileiro, então, é menos solidário do que a imagem comum que se tem?
Aquela visão do homem cordial, que era capaz de conviver de forma solidária com todos, são valores muito católicos. E me parece que a transição religiosa, com o crescimento tanto do protestantismo, quanto do contingente de pessoas sem religião, acabou abrindo espaço para uma sociedade que valoriza mais a postura individual. Ou seja, o brasileiro adere mais à ideia de que só pode contar consigo mesmo e com Deus, acha que ninguém mais vai ajudá-lo.