A reação do governo federal, cheia de meias palavras, mostra como a vitória da ultradireita é profunda: a defesa da vida e dos direitos humanos passou a ser vista como excesso "radical" e mesmo boa parte dos atores políticos da esquerda tem medo de chamar o que ocorreu pelo nome.

Ante a chacina ocorrida, é constrangedora, mesmo que não superpreendete, a postura da mídia (Da Globonews a Folha de SP), que por temerosa de ser qualificada como progressistas ou por simpatia velada simpática ao fascismo abusa de elipses e eufemismos.

É possível, assim, interpretar que ontem vimos a vitória da frente ampla construída pela esquerda em 22 e menosprezada por análises superficiais de parte da mídia, que se detém apenas na contagem de votos parlamentares e em pesquisas determinadas pela conjuntura mais imediata.

Mas um dos aspectos centrais do evento de ontem é que Bolsonaro foi julgado e derrotado politicamente não pelo "polo de esquerda", como sugeriria o esquema da polarização, mas por atores de uma direita que não aderiu ao autoritarismo.

Claro que parte dos seus movimentos decorrem da sua compreensão de política: as declarações de Bolsonaro sugerem reiteradamente que ele não apenas prefere a tomada golpista do Estado a eleição, como a crê mais legítima.

Animado pela adesão irrestrita da maior parte da direita brasileira, que passou a sócia menor de uma coalizão de ultradireita, Bolsonaro calculou mal seu embate político com o Judiciário. Apostou mais fichas do tinha e perdeu.

Ainda é relevante para o desenlace que seu alvo no STF não tenha sido um ministro com trajetória de esquerda, como Fachin, mas alguém com um percurso consolidado na direita brasileira, como é o caso Alexandre de Moraes.

Também ilustra bem o estado da arte da maior parte do debate jurídico no Brasil, ressalvadas honrosas exceções.

Com sua politicagem rasteira, mediocridade intelectual travestida de pretensa erudição e uso por conveniência de teses mal-ajambradas, que variam conforme a ocasião, Fux representa fielmente o funcionamento regular do poder Judiciário no Brasil, bem mais que seus colegas de turma.

Quando observados de perto, os "dados empíricos" são superficiais e padecem de uma estrutura tautológica. O mais preocupante não é a reprodução entusiasmada das análises por jornalistas, mas a incapacidade de crítica dos que trabalham com pesquisas e ensinam outros a fazê-lo.

Opa, legal! É um trabalho para muita gente!

"O amplo predomínio de uma ordem liberal no pós-89 passou a identificar o liberalismo, e mais precisamente o neoliberalismo, como único projeto realista de sociedade. (...)criou-se espaço para uma versão radicalizada desse ideário, a qual retoma uma dimensão utópica outrora central no campo liberal"

"Talvez o encontro entre as características da sociedade brasileira e o hiperindividualismo ultraliberal produza líderes mais semelhantes a Pablo Marçal, que parecem prontos para o que o neoliberalismo, outrora hegemônico, e as elites ultraliberais não se mostraram capazes: mobilizar as massas."

O governo não tem outra saída, contudo, a não ser esticar a corda. Seja porque ceder tudo pode acabar com o atual mandato, seja porque pavimenta uma futura vitória da ultradireita amanhã, com base na frustração de parte base social do lulismo. O cenário é trágico e difícil.

O discurso não começa hoje, mas já se delineia com alguma clareza desde 1989, assim como não se restringe ao Brasil. Economistas do debate público, é claro, vão repetir os modelos antes aprendidos, construídos a partir de uma premissa antropológica estúpida, como mantra.