Vaqueirinho: abandono, miséria e demora em diagnóstico psiquiátrico marcaram o drama de jovem morto por leoa na Paraíba
"Não é possível. Ele se coloca em risco o tempo inteiro”, reagiu a conselheira tutelar Verônica Oliveira ao saber que Gerson de Melo Machado havia sido pego no trem de pouso de um avião na Paraíba. Vaqueirinho, como era conhecido, queria ir para a África domar leões. O episódio fez o Conselho Tutelar de Mangabeira, bairro mais populoso de João Pessoa, intensificar a busca por um laudo para o rapaz, que as autoridades diziam ter “problemas comportamentais”. O documento saiu em 2023, mais de cinco anos após ele ser flagrado vagando sozinho por uma rodovia — e dois anos antes da invasão a uma jaula no Parque da Bica, zoológico na capital paraibana, para ver a felina Leona “mais de perto”. A morte do jovem de 19 anos, atacado pelo animal no último dia de novembro, ilustra as dificuldades do Estado para lidar com pacientes psiquiátricos, que são agravadas pelos aspectos sociais.
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O laudo não falava em esquizofrenia, que viria a ser diagnosticada apenas este ano, mas citava "comportamento disjuntivo", "episódios de oscilação de humor" e orientava tratamento multidisciplinar em regime integral. Segundo Verônica, foi desconsiderado pela Justiça da Paraíba.
Gerson de Melo Machado, o Vaqueirinho, foi morto após invadir recinto de felinos no Parque da Bica, em João Pessoa — Foto: Reprodução/Instagram
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Ele continuou na socioeducação sem o acompanhamento recomendado. Ele foi a vítima de um Estado que não cuida, que não acolhe, que não protege. O Estado falhou em tudo. Até nós, do Conselho Tutelar, se a gente tivesse cobrado em vez de dialogar tanto, talvez tivesse sido diferente. Eu poderia ter feito mais — diz.
As duzentas páginas do prontuário de Vaqueirinho listam sucessivas tentativas de acolhimento desde os 4 anos. Não tinha o nome do pai na certidão de nascimento e a mãe, esquizofrênica, foi destituída do poder familiar. Os outros quatro filhos foram adotados; Gerson, não. "Ele é perverso, quem iria querer?", argumentou a direção do acolhimento, segundo Verônica. Nos anos seguintes, com as crises, foi internado em hospitais ou levado pela polícia. Dos 12 aos 18, Gerson foi apreendido dez vezes. Já adulto, foi preso outras seis, por danos e furtos.
Gerson na infância: tentativas de acolhimento desde os 4 anos
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Aos 18 anos, Gerson foi "despejado" dos abrigos e ficou ainda mais vulnerável. Passava longos períodos na rua, dormia em bancos de praça, como detalhou o blog True Crime, do jornalista Ullisses Campbell, no GLOBO. Sentia fome, pedia comida. Virou "presa fácil" para delinquentes da região: foi influenciado a cometer pequenos furtos e ensinado a fazer ligação direta em motocicletas. Em julho deste ano, passou sem capacete em frente a uma viatura e confessou ter furtado a moto. Alegou que seu objetivo era ir de João Pessoa até Natal (RN).
Nos períodos em que estava solto, Gerson rodava pela região. Chegou a ser acolhido em alguns momentos em Recife (PE) pela avó, que nunca pôde oferecê-lo um lar estável. Além das motos, pegava cavalos pelo caminho para dar uma volta. Ficou conhecido dos serviços de segurança com o apelido de Vaqueirinho — do qual, inclusive, nunca gostou. Sem lar, sem comida, sem tratamento, cometia delitos com objetivo declarado de ser detido.
Ele só conseguia ficar onde o aprisionavam. Ele quis durante muito tempo morar no hospital psiquiátrico para onde foi depois de ter um surto. Ele tinha consciência de que precisava de ajuda, mas não conseguia controlar a fuga. Todas as vezes que a Justiça o soltava, ele cometia um delito para voltar. Eram pedidos de socorro — diz Verônica.
No último dia 24, Gerson foi preso duas vezes em uma hora em João Pessoa: por danificar um caixa eletrônico e, logo após ser liberado, jogar um paralelepípedo numa viatura policial. "Eu quero ficar preso e vou falar um bocado de coisa pra o juiz", disse a agentes.
Atendido no Caps
As crises se sucederam. Só em 2025, deu entrada duas vezes no Hospital Ulysses Pernambucano (HUP). As internações psiquiátricas não duravam tanto tempo, conforme o modelo adotado em 2001, quando o Brasil aprovou lei para fechar os manicômios e substituí-los por uma Rede de Atenção Psicossocial (RAPS), focada no tratamento comunitário, na liberdade e nos direitos humanos, com serviços como os Centros de Atenção Psicossocial (Caps).
A prefeitura de João Pessoa afirma que Gerson foi acompanhado desde os 7 anos por três psiquiatras no Caps Infantil e citou relatórios enviados ao Ministério Público que apontavam que "o Caps não correspondia ao perfil do usuário". Passou, depois, a ser atendido na Policlínica Municipal de Mandacaru. A partir dos 18, foi encaminhado ao Caps adulto, mas tinha "muita dificuldade de aderir ao tratamento", segundo a direção da unidade. Ia ao Caps e depois sumia, sem dar continuidade. Foi ao serviço pela última vez três dias antes de morrer.
Quando adulto, ele ficou um tempo no acolhimento 24 horas do Caps e, após a estabilização necessária, a avaliação da equipe seguiu para a atenção-dia. Ele recebia atendimento, passava bem, tomava medicação, mas ele não costumava permanecer. O Caps é um serviço que trabalha com demanda espontânea, vinculado à escolha do indivíduo, precisa dessa adesão dele. Não se fecham portas no Caps, para que o usuário se sinta acolhido e permaneça no seu tratamento — afirma Alessandra Gomes, responsável pela rede de saúde mental em João Pessoa.
A prefeitura de João Pessoa diz que Gerson também passou por consultas particulares viabilizadas pelos serviços de assistência social. "Todos os profissionais apontaram para as mesmas hipóteses diagnósticas: deficiência intelectual, transtorno de conduta e transtorno opositor desafiador (TOD)", diz a nota. Um novo diagnóstico veio à tona este ano, num processo criminal em que foi acusado de danificar o portão de um centro educacional onde já havia sido internado. Na ocasião, em janeiro, um agente educacional usou spray de pimenta para contê-lo "em razão do comportamento agressivo e desequilibrado".
Documentos anexados ao processo apontam que, no presídio, Gerson não dormia, falava de forma descoordenada e subia no telhado, "colocando sua integridade e das outras pessoas em risco". Servidores que o acompanhavam na cadeia disseram que ele agia como uma criança de 5 anos: só se comportava se recebesse algo em troca, como bombons. Preso, chegou a se mutilar e bater com a cabeça na parede.
A avaliação de sanidade mental apontou "presença de delírios interpretativos, alucinações afeto raso e discurso vago, consistentes com esquizofrenia". Com o laudo, em outubro, a Justiça determinou que ele fosse internado num Hospital de Custódia e Tratamento Psiquiátrico por ser "inteiramente incapaz de compreender o caráter criminoso de seu ato ou de se comportar de acordo com esse entendimento". Gerson morreu antes de ser intimado da sentença.
Como o Estado falhou com Vaqueirinho?
Especialistas ouvidos pelo GLOBO concordam que o poder público e a comunidade, como um todo, falharam ao negarem a Gerson os direitos a um tratamento adequado, à assistência para uma vida digna e ao convívio familiar e comunitário. Ao longo dos anos, ele manteve contato raro apenas com um dos irmãos, que acabou por se afastar a partir do conflito com a lei.
A gente ficou muito surpreso porque começaram a aparecer parentes depois da morte dele. Passamos oito anos procurando família extensa, e agora quiseram aparecer — diz Verônica. — Gerson não é caso isolado. É imensa a quantidade de crianças que tenho aqui encaminhadas para conseguir laudo, por exemplo, de autismo, e que estão prejudicadas porque estão sem tratamento e não conseguem ficar na sala de aula.
Para o psiquiatra Rodrigo Bressan, professor da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) e pesquisador especializado em esquizofrenia, embora a reforma de 2001 tenha representado um avanço, o modelo atual carece de investimento em prevenção ou tratamento precoce.
Os equipamentos foram criados para atender quem saiu do manicômio. A psiquiatria contemporânea precisa é de situações ambulatoriais, mais efetivas. O Brasil está muito para trás nisso. Pessoas diagnosticadas precocemente têm acesso a melhores tratamentos e medicamentos, e têm prognóstico diferenciado. Há pessoas esquizofrênicas que são médicas, juízes, casadas, com filhos. Sem cuidado adequado, ela é isolada, perde a capacidade de trabalhar, piora. E mesmo se o Gerson já estivesse cronificado, não tem caso perdido. Deixaram ele ficar psicótico assim, a ponto de entrar numa jaula de leoa — avalia.
Bressan pontua que o tratamento adequado passa por medicação e terapia ocupacional, com assistência para as famílias e combate ao preconceito. Tratando cedo e bem, ele diz, internações se tornam raras. Para Ludmila Correia, professora e coordenadora do grupo de extensão Loucura e Cidadania da Universidade Federal da Paraíba (UFPB), Gerson foi vítima de uma "negligência sistemática".
Em toda a vida dele, retiraram a liberdade, mas não proveram o cuidado. Faltaram políticas públicas de assistência social, moradia, convivência familiar e comunitária. Muitas vezes essas redes não se comunicam, e as pessoas são tratadas de forma recortada. Ele foi atendido por um sistema só: o da privação de liberdade. Vejo as pessoas ressentidas porque ele morreu antes de ser cumprida a ordem da Justiça de interná-lo, mas a gente tem outras medidas hoje que poderiam ter sido adotadas, com direitos que ele nunca teve. Internação é medida clínica, não pode ser punição — pondera.
Dias antes de morrer, Gerson procurou o Conselho Tutelar para pedir documentos para tirar a carteira de trabalho. Pouco antes disso, no dia 25, a Justiça da Paraíba havia determinado avaliação urgente do rapaz para que fosse viabilizada a aposentadoria por incapacidade.
Ludmila ressalta que o caso de Gerson joga a luz para a necessidade de fortalecer ações na atenção básica, com residências terapêuticas, auxílios financeiros, acolhimento para adultos e, por exemplo, leitos integrais de saúde mental — dispositivo previsto na reforma de 2001, mas nunca implementado em João Pessoa.
Para o presidente da Associação Brasileira de Psiquiatria (ABP), Antônio Geraldo, Gerson deveria ter ficado internado como forma protegê-lo dele mesmo.
A leoa tem moradia, assistência em saúde, comida balanceada. Tudo o que Gerson precisava ter, e não teve. Temos várias pessoas preocupadas com a leoa e não com outros doentes mentais que estão perambulando pelas ruas. Gerson não tinha noção do perigo, não tinha a menor condição de aderir ao tratamento, de ir ao Caps. Tinha que ser colocado sob proteção do Estado. O doente mental é ignorado no Brasil. Não existe medicamento para tratar transtornos psiquiátricos na Farmácia Popular, não tem serviço de emergência 24h na maioria das cidades do Brasil. Não existe dizer: 'não vamos fazer internação'. A doença não vai acabar com um decreto. Isso aumentou o estigma — afirma.
Já para Alessandra Almeida, presidente do Conselho Federal de Psicologia (CFP), entre "várias falhas" no caso, os repetidos enclausuramentos de Gerson foram a mais grave.
Não são espaços de cuidado em saúde. No regime fechado, ele se desestabilizou mais. Eu ouço: "Tá vendo, por que fecharam os manicômios?". Mas o que fica patente nessa situação triste é que o afastamento das pessoas dos ciclos comunitários é justamente o que não deve ser feito. É uma pessoa que apresenta esses comportamentos desde a infância, o que coloca mais ainda sob a responsabilidade das políticas públicas. Será que o único espaço de cuidado é o Caps? Não estou dizendo que não é, mas a gente precisa sair dos Caps para estar com as pessoas. Essa rede se colocou furada. Tem um provérbio africano que diz: "É preciso uma aldeia inteira para educar uma criança". Todos nós falhamos com o Gerson — diz.
Após dias em observação, Leona voltou ao recinto de felinos do Parque da Bica, que segue fechado. A Polícia Civil investiga o caso.