Kawahiva: Governo fracassa na demarcação de terra indígena com isolados
A Terra Indígena Kawahiva do Rio Pardo, ao noroeste de Mato Grosso, transformou-se em um símbolo da ineficiência estatal e da luta pela sobrevivência dos povos indígenas isolados no Brasil. Embora o Supremo Tribunal Federal (STF) tenha exigido ação imediata para demarcação física do território, o processo se arrasta por mais de 26 anos, travado por burocracia, disputas políticas e falta de recurso, favorecendo invasores e colocando o povo Kawahiva sob constante ameaça de extinção. A Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai) prometera concluir a regularização fundiária até o fim deste ano e esperava-se que ela fosse anunciada durante a COP30 pelo governo federal, mas as negociações voltaram à estaca zero.
Tapiris abandonados por kawahivas, no interior da terra indígena de Mato Grosso, com redes, cestos e restos de alimentos deixados para trás
Funai
A demarcação física do perímetro de 323 quilômetros — com instalação de marcos de concreto e placas — é o passo para convencer madeireiros, garimpeiros e pecuaristas de que o governo pretende assegurar a proteção territorial. Mas, no mês passado, o Brasil passou pela COP sem mencionar os Kawahiva do Rio Pardo.
Kawahiva: Expedição na Amazônia confirma presença de indígenas isolados; vídeo
Documentos internos da Coordenação-Geral de Geoprocessamento (CGGeo) da Funai, assinados em maio passado e obtidos pela reportagem, revelam que o plano de execução fracassou por falta de recursos, e a autarquia admite que, no momento, “não se faz possível a indicação de data para a finalização da demarcação física”. O povo Kawahiva segue cercado por madeireiros e grileiros, sob risco iminente de genocídio.
Tapiris abandonados por kawahivas, no interior da terra indígena de Mato Grosso
Funai
Tentativas frustradas
Inicialmente, a demarcação física seria custeada por compensações da Secretaria de Infraestrutura de Mato Grosso, mas o plano não avançou. A tentativa de executar o serviço por meio da Fundação de Empreendimentos Científicos e Tecnológicos (Finatec), a partir de um Acordo de Cooperação Técnica, também foi descartada: a própria fundação afirmou que seus recursos eram insuficientes para cobrir o custo estimado em mais de R$ 5 milhões. Uma nova alternativa, via Exército, também não prosperou. A Funai agora tenta fechar uma parceria com o Instituto de Geociências da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), mas sem previsão concreta.
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Os documentos da Funai detalham por que o custo é tão elevado. Trata-se de uma atividade “complexa”, em que mais de 70% do perímetro corresponde a rios e igarapés de difícil navegação em floresta densa, exigindo equipes e equipamentos especializados.
Ao GLOBO, a Funai admite o fracasso das negociações:
— Estamos em instrução junto à universidade de um repasse financeiro para custear a ação. O processo será encaminhado à análise da nossa procuradoria. As ações em campo estão previstas para serem executadas no início de 2026 — afirma Manoel Batista do Prado, diretor de demarcação de terras indígenas.
Procurado, o Instituto de Geociências da UFMG confirma que está em “conversas avançadas” com a Funai, mas sem dizer quando nem como irá apresentar um plano de demarcação física para o território.
A demarcação física é uma etapa imprescindível para que o processo siga para homologação pela Presidência da República. Enquanto não sai, o território segue em insegurança jurídica.
Expedição no território
O sertanista Jair Candor (ao meio), o indigenista Rodrigo Ayres e o mateiro Francisco Sales Gomes (com óculos na camisa) durante expedição na Terra Indígena Kawahiva do Rio Pardo
Daniel Biasseto /O GLOBO
Em meados de 2024, O GLOBO e o jornal britânico The Guardian percorreram mais de 100 quilômetros no território que fica no lado sul da Amazônia. A missão era testemunhar o trabalho de especialistas que protegem e monitoram povos indígenas que não têm contato com a sociedade envolvente.
Certa manhã, no coração do território, o grupo de expedição começou a encontrar sinais deles: um pequeno cesto recém-tecido com folhas largas, pegadas de criança na margem de um riacho e troncos de árvores abertos a machadadas horas antes para extrair mel. Havia tapiris abandonados no ano anterior que estavam afundando no chão da floresta e pilhas de cascas de castanhas descartadas ao redor de antigas fogueiras. O povo Kawahiva estava lá. E a reportagem pôde comprovar. (Assista abaixo documentário da expedição Kawahiva)
Assista:
Terra Kawahiva: expedição na Amazônia confirma presença de indígenas isolados
Isso não foi surpresa para Jair Candor, o líder da expedição, que confirmou a presença deles pela primeira vez em 1999. Vinte e cinco anos depois, a reserva de 411 mil hectares (quase meio milhão de campos de futebol) proposta para eles ainda carecia de proteção total, exigida pela Constituição Federal. É a maior floresta desprotegida com indígenas isolados no Brasil.
Do lado de fora dos limites da reserva, a floresta queimava. Gado pastava em terras recentemente desmatadas. Cercas e portões estavam sendo erguidos e estradas eram abertas cada vez mais para dentro da mata.
Em uma entrevista após a expedição, Janete Carvalho, diretora de proteção territorial da Funai prometeu remediar a situação.
— Estamos fazendo todo o possível para garantir que a Kawahiva seja demarcada em 2025 — afirmou ao GLOBO. Meses depois, durante um seminário em Cuiabá, Janete já não tinha a mesma convicção. Um vídeo divulgado nas redes sociais mostra o desencantamento de Jair Candor com a espera pela demarcação.
Jair Candor cobra demarcação de Kawahiva
Para agravar o cenário atual na TI Kawahiva, a Funai destaca a “situação conflituosa da região”, e afirma que a realização da demarcação exigirá o acompanhamento de “força policial durante todas as etapas de campo” para garantir a integridade física dos servidores. Prova disso são as constantes ameaças sofridas pelos agentes que trabalham na proteção dos isolados.
O GLOBO obteve acesso a um áudio com ameaças diretas ao chefe da frente de proteção Madeirinha-Juruena, o sertanista Jair Candor, responsável pela proteção da TI Kawahiva e Pirirpkura, ambas com a presença de isolados. Na gravação, de julho deste ano, um homem que se denomina Cacique Francisco convoca fazendeiros do município de Colniza e região para retomar a terra “roubada por aquele safado do Jair”.
Cacique Francisco, que se diz vinculado à Associação indígena Arara, é Francisco das Chagas Paulo Rodrigues. Ele foi o autor da invasão à Base Kawahiva do Rio Pardo em 10 de outubro de 2018, que resultou na morte de um indígena cooptado por ele, segundo as investigações. Ele responde a um processo judicial aberto por Jair Candor, na Vara Federal Cível e Criminal da SSJ de Juína/MT, por crimes como tentativa de homicídio.
Francisco afirma no áudio ter realizado expedições de “seis dias” dentro da terra indígena Kawahiva “atrás do tal dos índios isolados que o Jair fala tanto aí”. A portaria que mantém a Força Nacional na base tem sido renovada a cada três meses, porém, sem a demarcação física a proteção aos servidores fica em xeque.
OUÇA O ÁUDIO ABAIXO:
Áudios de “Cacique Francisco”,que diz pertencer à Associação Indígena Arara
Ao GLOBO, Jair Candor confirmou as ameaças, mas não quis comentar por questões de segurança. Francisco não foi localizado.
Enquanto a Funai tenta encontrar uma terceira via para viabilizar a demarcação, o povo Kawahiva segue ameaçado. A decisão do Ministro Edson Fachin (STF), no âmbito da ADPF 991, que reconheceu o “risco de genocídio” e exigiu a conclusão do cronograma, vê agora seu principal prazo, o final de 2025, oficialmente descartado por incapacidade financeira e operacional dos órgãos responsáveis.
A ação, movida pela Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib), visava frear a omissão do poder público que ameaça o modo de vida e a própria existência dos povos isolados e de recente contato.
Elias Bigio, antropólogo do Observatório dos Povos Indígenas Isolados e de Recente Contato (OPI) e ex-coordenador da Funai, se mostra preocupado:
— Faz 26 anos da confirmação de indígenas isolados na terra Kawahiva. E durante todo esse tempo, os grileiros sempre buscaram derrubar a declaração da terra na Justiça, sem contar as ameaças e invasões que ocorrem até hoje. E agora, mais uma vez, a demarcação é atrasada.
“Obstáculo político”
Bigio levantou a possibilidade de que “isso seja um obstáculo político, e não técnico e legal”.
— Por isso, tememos que isso não aconteça nem no próximo ano. Depois disso, se um governo de direita for eleito, avalia, espera-se amplamente que toda demarcação de terras indígenas seja interrompida, como foi o caso durante os anos Bolsonaro. Assim, muitos veem 2026 como a última chance do território Kawahiva —- finaliza.
Organizações indigenistas, como a Apib e a Survival International, contestam a lentidão e apontam o descumprimento contínuo das medidas cautelares, reforçando que a vida dos Kawahiva não pode esperar pela “reestruturação” burocrática.
Ricardo Terena, advogado da Apib, descreveu o processo como “paralisado”.
— Mesmo com a apresentação de um cronograma ao Supremo Tribunal Federal para a finalização do procedimento demarcatório, este segue sem avanço — afirma.
O futuro dos Kawahiva do Rio Pardo está agora em uma corrida contra o tempo, monitorada de perto pela Justiça, mas ainda à mercê da vontade política e da eficácia do governo federal.
— O atraso na demarcação não é apenas ilegal, é também extremamente perigoso e coloca em risco a vida dos indígenas Kawahiva isolados — afirma Priscilla Oliveira, representante da Survival International, entidade responsável por campanhas internacionais de proteção aos povoAs isolados no mundo.
Procurado pelo GLOBO, o STF afirma que aguarda o cumprimento da decisão.
* Esta reportagem foi produzida em conjunto com o jornal britânico The Guardian. A série sobre povos isolados tem o apoio da Fundação Ford, Nia Tero Foundation e do Pulitzer Center.